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O trânsito de Luanda

Artigo
O trânsito de Luanda

Muito ouço os estrangeiros que vêm a Angola e se queixam do trânsito caótico da cidade capital. Na verdade, até já quando em visita a vários países europeus, e até no Brasil, ouço pessoas que nunca estiveram em Luanda a dissertarem sobre o trânsito “terrível” desta cidade africana. Será caso único e assim tão mau?

De acordo com o último censo nacional, projecto grandioso realizado em Maio deste ano, ficaram-se a conhecer alguns números sobre a população angolana (Tabela 1). Por exemplo ficámos a saber que a população de Angola são mais de 24 Milhões de pessoas, distribuídos de forma quase igual entre género (com um pouco mais do sexo feminino), e que cerca de dois terços dessa população vive em áreas urbanas.

De facto, quem conhece Angola, aproveitando para viajar pela recentemente renovada rede viária, antes destruída e muito degradada como consequência do longo período de guerra que o país atravessou até 4 de Fevereiro de 2002, facilmente constatará que, assim que saímos das cidades principais, encontramos um país (muito) extenso, com baixo índice de ocupação, com uma imensidão de território em estado natural, apenas esparsamente ocupado pelos projectos agrícolas que começam agora a despontar.

Aí não há problemas de trânsito ou engarrafamentos, a não ser quando alguns animais cruzam a estrada ou quando alguns turistas decidem parar para tirar fotografias…

Tabela 1: Distribuição da população angolana por província (Fonte: INE de Angola, RGPH 2014, Resultados Preliminares do Censo)
Província/Área de Residência Total
N.º %
Angola 24 383 301 100
   Urbana 15 182 898 62,3
   Rural 9 200 403 37,7
Províncias
Cabinda 688 285 2,8
Zaire 567 225 2,1
Uíge 1 426 354 5,9
Luanda 6 542 944 26,9
Cuanza Norte 427 971 1,8
Cuanza Sul 1 793 787 7,4
Malanje 968 135 4
Lunda Norte 799 950 3,3
Benguela 2 036 662 8,4
Huambo 1 896 147 7,8
Bié 1 338 923 5,5
Moxico 727 594 3
Cuando Cubango 510 369 2,1
Namibe 471 613 1,9
Huila 2 354 398 9,7
Cunene 965 288 4
Lunda Sul 516 077 2,1
Bengo 351 579 1,4

De reparar ainda, de acordo com uma simplística análise da tabela 1, que mais de um quarto da população de Angola vive na província de Luanda, a mais concorrida do país com 6.5 milhões de habitantes, a que não serão alheios também os muitos anos de êxodo populacional devido às dificuldades da guerra, e ainda o facto de que é na capital que se concentram os centros de decisão políticos, económicos, empresariais e até sociais. Claro que as províncias da Huíla, Benguela e Huambo aparecem respectivamente com 2.4, 2.0 e 1.9 milhões de habitantes sendo, juntamente com um surpreendente Cuanza Sul (1.8 milhões), aquelas que contribuem com mais 8 milhões de habitantes para a contabilidade nacional, totalizando portanto cerca de 14.5 milhões (cerca de 60%) de angolanos a viverem fundamentalmente, e por esta ordem, em Luanda, Lubango, Benguela, Huambo e Sumbe.

A população angolana vive fundamentalmente nas cidades principais!

Foram ainda contabilizados os habitantes de cada província e a sua distribuição por município, sendo aqui apenas desenvolvida a discussão para a província de Luanda, a Capital (sim com “C” maiúsculo), o tema desta crónica (Tabela 2).

Tabela 2: Distribuição da população na Província de Luanda (Fonte: INE de Angola, RGPH 2014, Resultados Preliminares do Censo) 
Província/ Município Total
Área de Residência %
Luanda 6 542 944 100
Área de residência    
Urbana 6 377 246 97,5
Rural 165 698 2,5
Município    
Cazenga 862 351 13,2
Cacuaco 882 398 13,5
Viana 1 525 711 23,3
Luanda 2 107 648 32,2
Belas 1 065 106 16,3
Icolo e Bengo 74 644 1,1
Quissama 25 086 0,4

Mais uma vez de forma simples e bastante directa, a análise dos dados permite inferir 3 “coisas”: 1) a quase totalidade (97.5%) dos 6.5 milhões de habitantes da província de Luanda vive em meio urbano, 2) um terço da população de Luanda vive no distrito urbano de Luanda, o centro da cidade, coincidente com a zona antiga e colonial, 3) corolário dos dois pontos anteriores, mas importante de afirmar – dois terços da população de Luanda vivem nos municípios que rodeiam o centro de Luanda, as zonas limítrofes e em extraordinária expansão urbanística.

Ora, estas são as “coisas” que importa analisar e comparar, quando se fala da maior desculpa para tudo o que se atrasa em Luanda: o trânsito “assustador”.

Será assim tão diferente em Johannesburg (9 milhões de habitantes) ou no Cairo (20 milhões) ? Será justa a comparação com Roma, São Paulo, Paris ou até Lisboa? Não têm também estas cidades, super-estruturadas e organizadas – do “primeiro mundo”, os seus problemas de trânsito, algumas delas com muito menos habitantes que Luanda ?

Numa visita há cerca de um ano a Lisboa, passando a ponte 25 de Abril cerca das 9:00, num dia de semana, a caminho do Alentejo com um amigo e alto responsável de um importante organismo do Estado angolano, perante uma fila de cerca de 19 kms no acesso de sul para Lisboa, dizia-me ele sorumbático: “Não percebo de que se queixam afinal os portugueses em Luanda… nunca vi tanto carro numa fila tão longa em ponto nenhum da cidade. A que horas vão eles trabalhar ?!”

Luanda cresceu de forma estonteante, principalmente desde 2002 – após a assinatura da Paz (sim, também com maiúscula!). A cidade que já era conhecida como uma referencia urbanística em África, com facilidades e uma qualidade de vida como então não se conhecia na “metrópole” (Lisboa), tornou-se o refúgio de muitos angolanos que fugiam dos horrores de uma guerra imposta por uma imensa sede de poder de alguns e, obviamente, por ingerências externas de países cujos interesses geoestratégicos, então infelizmente hoje talvez felizmente, coincidiam com os Angola.

Luanda viu as zonas periféricas crescerem, não apenas o musseque, mais ou menos organizado, mas também muitas novas (pseudo)urbanizações erigidas sem gosto e sem planeamento, por empresas nacionais, portuguesas, brasileiras e chinesas, que rapidamente perceberam o manancial de oportunidades que Luanda representava. Mais rápido que todos os planos urbanísticos, de acessibilidades, infra-estruturas de distribuição de água e energia, estudos socio-económicos ou demográficos, o betão ocupou o espaço e as pessoas ocuparam o betão.

É assim que dois terços da população de Luanda, mais de 4 milhões de pessoas, vivendo na periferia e muito provavelmente trabalhando no centro, se deslocam num ciclo diário laboral, enchendo de manhã as escassas vias de comunicação que permitem aceder à Luanda “central” e ao fim da tarde regressando ao Cacuaco, Viana, Kilamba, Zango, Camama, Nova Vida, Golfe, Benfica, Talatona, etc.

Muito tem sido feito para remediar esta situação. Sim, remediar, pois corremos atrás do prejuízo e dificilmente inverteremos esta tendência na próxima década. Constroem-se vias periféricas, novas radiais, vias rápidas (ou menos rápidas, quando cheias de viaturas em hora de ponta). Há novos ferrys, transporte ferroviário, tenta-se deslocalizar para a periferia empresas e organismos do Estado, escolas e universidades, serviços públicos e mercados, novas centrais eléctricas e pontos de abastecimento de água… mas sempre sob pressão e também com imensas dificuldades logísticas.

Luanda de hoje está muito diferente de Luanda de 1980 ou de 2000. Apenas se vislumbram já os resquícios de Luanda dos idos anos 60 do século passado. Para o bem e para o mal, que nesta azáfama já se destruíram muitas referencias urbanísticas insubstituíveis.

Luanda é uma cidade de futuro. O trânsito é um problema que temos de solucionar. Não pode é ser nem desculpa para tudo nem uma maldição, mas antes algo que urge discutir, planear, ordenar, projectar e melhorar. Para isso temos de contar com a experiência e a ajuda daqueles que nos seus países já conhecem possíveis soluções e alternativas.

De forma construtiva e sem aquela frase, que tanto me incomoda e de quem não conhece o mundo: “Isso só em Angola!”.

Nuno Gomes
Pró-reitor da UnIA

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