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Uma história de sucesso

Artigo
Uma história de sucesso

O rapaz Sebastião já estava na puberdade, bem avançada, mas ainda gostava de conversar com o avô Sacadura antes de adormecer. Quando o avô não tinha assunto, costumava ler-lhe uma qualquer passagem morna ou simplesmente “chata” de um livro. Embora atualizado em matéria de tecnologias o avô Sacadura continuava a preferir os livros “tenho que sentir o cheiro do papel e do pó. Só assim as histórias são reais“, costumava dizer. O rapaz, de uma forma ou outra, mergulhava sorridente num sono que exteriormente se refletia como tranquilo e feliz, talvez com as hormonas também elas adormecidas.

No seu quarto, uma vez que desde os poucos meses de idade o rapaz havia mostrado interesse por aviões, os pais haviam-lhe encharcado o teto e as paredes com cerca de duas dezenas de aviões dos mais variados materiais, do papel ao latão, do modelo facilmente identificável ao mais disforme. Na parede, ao lado da porta de entrada do quarto, um Avro Lancaster a três dimensões, cortado a meio, um pouco antes da cauda. A perspetiva era frontal, como se viesse a voar diretamente para a nossa testa. Extraordinária envergadura de asa com os quatro motores Rolls Royce Merlin V12 que pareciam vibrar à passagem de qualquer olhar mais curioso. As quatro pás de cada hélice correspondiam, neste Lancaster do Sebastião, aos suportes para pendurar a roupa a uso, como por exemplo o pijama, azul escuro e pintado com passarinhos de bico amarelo.

Naquela noite, o avô Sacadura não tinha assunto. Por isso, dirigiu-se à pequena sala que, nos últimos anos utilizava como escritório e onde ultimamente, desde que se reformara, ocupava por largas horas. Erguendo-se e em bicos de pés, retirou uma pequena sebenta “tipo livro com pó”, neste caso sobre a História Resumida da Aviação, propositadamente colocado por debaixo de uma taça que havia ganho no Centenário do Aeroclube. Tratava-se da história, escrita por alguém e nunca publicada, de uma indústria entretanto modificada e à época com múltiplas implicações económicas e sociais a montante, dentro e a jusante de si.

Afinal tudo havia mudado naquela indústria. Décadas de concorrência desenfreada pela sedução de passageiros, a luta egocêntrica e esquizofrénica de pilotos pela obtenção de participações sociais nas empresas antes nacionais e entretanto privatizadas concomitantemente com a seca global, desviaram o interesse turístico para outras paragens no sistema solar.

O avô Sacadura começou a ler ao Sebastião: “Naquele espaço a que então se chamava Europa, havia a tradição das companhias de aviação de bandeira. Quase todos os países tinham uma. Países mais desenvolvidos culturalmente partilhavam a mesma companhia, mas eram poucos os exemplos“.

Em 2015, uma dessas companhias de bandeira que desde o final dos anos 90 do séc. XX havia crescido até onde os naturais desse país nunca haviam imaginado e tido resultados positivos ao invés do sucedido nos quase 50 anos da sua história, colapsou tal como era conhecida, qual caso de empresa de sucesso durante os seus últimos quinze anos, com case study em Harvard. Uma empresa com múltiplas valências: para além de importantes hubbs criados em Lisboa e Porto, estava também a desenvolver um outro, de invejável interesse estratégico e visionário, em Panamá City sendo o primeiro Star Member a fazê-lo.

Durante os primeiros catorze anos do século XXI, recebeu repetidamente vários e dos mais importantes prémios da indústria, como por exemplo o de “Melhor companhia aérea da Europa”, o de “Líder Mundial para África e América do Sul”, e de “Melhor companhia europeia” entre outros. Para além de companhia de aviação cobiçada era à época uma das mais importantes e credenciada empresa de manutenção de aeronaves a nível global, posicionada nos dois hemisférios. Atingiu um saldo positivo na Balança Comercial Nacional de 2375 milhões de euros, correspondente a mais de 20% do saldo daquele país em 2013, e sensivelmente o mesmo em 2014.

Na sequência da abertura por parte do governo nacional, enquanto representante dos dez milhões de acionistas, de um concurso para a respetiva privatização, um dos sindicatos de um grupo profissional dessa empresa não concordou “a não ser que ficassem com 20% das ações da empresa privatizada”, sem se importarem com os restantes milhares de trabalhadores dessa empresa ou tão pouco com os acionistas. Decidiram-se por uma greve de 10 dias consecutivos e com júbilo gabaram-se de “quem achar que a greve não resultou, respondemos que resultou em pelo menos 35 milhões de euros de prejuízo para a companhia“! Por outro lado, o partido que naquela época queria reconquistar o poder perdido em 2011, afirmou patrioticamente “fazer reverter qualquer privatização que ultrapassasse os 49,00%”.

Sebastião interrompeu o avô questionando: “Avô, mas como se faz uma privatização a 49% se os restantes 51% ficam no Estado? E como pode uma classe de poucas dezenas de trabalhadores sobrepor-se aos interesses de 10 milhões de acionistas e de um governo eleito democraticamente?“. E continuou: “No dia da abertura das propostas relativas ao concurso, houve propostas? Não achas demasiada coincidência toda essa agitação? Porque iriam investir numa empresa com essas valências e ameaças se pudessem ficar com algumas das valências e sem as ameaças, aquando do desmantelamento e redução de operações, após a reestruturação?“. Calando-se de repente ao observar a expressão carregada do avô Sacadura.

Rouco de emoção, o avô Sacadura ainda tentou responder, mas apenas terá conseguido balbuciar algo impercetível. Afinal, havia contribuído com o seu esforço, durante mais de 32 anos de trabalho para aquela empresa….

Mário Lopes
VINCO – Consultoria, Gestão e Investimentos, SA

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